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Artigo: Por uma ideia de literatura expandida




Por Cristiane Costa

O cinema nasce do teatro, mas não é teatro. É uma nova arte, com uma nova linguagem, criada a partir de uma nova tecnologia. O mesmo pode ser dito da fotografia em relação à pintura. E, com algumas ressalvas quanto a seu conteúdo artístico, do rádio e da televisão. Terá chegado a vez da literatura? Até onde ela pode se expandir em hipertextos, hiperlinks, multimídias, quebrando a linearidade da página, antes de se tornar uma nova arte?

Enxergar que o livro eletrônico é um novo passo na longa série de invenções de tradições narrativas tira o foco da discussão banal entre os que acham que o livro impresso vai acabar e os que se recusam a abandonar o papel.

A própria ideia de livro e literatura perde parte de seu sentido quando nos deparamos com novas estratégias narrativas em bases digitais, que atuam na confluência de várias artes e mídias. O aspecto inovador não está restrito apenas à tecnologia de leitura dos tablets, nos chamados >ita<enhanced books ou enriched books (livros enriquecidos ou turbinados), mas também às maneiras de narrar.

A “literatura” é contaminada pela lógica interativa dos games; cortada, colada e remixada, como fazem os DJs; integrada à internet, misturando palavra, vídeo, foto, som e animação, e explodindo em 3D nas telas com cenários e personagens em Realidade Aumentada. Estes “livros” podem ainda ser reescritos por seus leitores, em experiências interativas e colaborativas que colocam em questão o conceito de autoria e propriedade intelectual.

Na era digital, books viram vooks (vídeo + book). Romances epistolares passam a ser e-pistolares, com símbolos do SMS substituindo os travessões. Até mesmo coordenadas geodésicas, como as marcações do Google Maps, podem oferecer estruturas narrativas jamais usadas antes para clássicos como “A volta ao mundo em 80 dias”, de Julio Verne. Chatbots (programas de computador desenhados para similar uma conversação normal entre personagens e leitores) abrem espaço para um nível de interatividade inédito.

Ainda é cedo para medir o impacto na criação literária dessa literatura sem papel. O livro eletrônico poderia desenvolver novas formas expressivas, assim como o livro impresso possibilitou o boom do romance, e a câmera, do cinema? Novas tradições narrativas não nascem do nada, alimentam umas às outras. O desejo de imersão no universo fantasioso é uma ambição da literatura desde os seus primórdios. Desejo que pode ser intensificado ao máximo neste mundo em que os verbos ler, ver, ouvir, interagir, compartilhar e comentar se misturam. Mas, se tudo é dado pela tecnologia, qual o espaço para a imaginação?

Tudo isso enche os olhos, mas ainda parece experimental demais, sem qualidade literária que possa ser apreciada pelo leitor comum. No entanto, há décadas lemos e apreciamos obras que permitem criar combinações, experimentando uma outra ordem de leitura. Os poemas aleatórios de Tzara, os labirintos de Borges, as construções hipertextuais de Cortázar, as experiências de Perec e do grupo Oulipo, os cut-ups de William Burroughs ou as histórias incompletas de Calvino já apontam para uma forma de expressão não-linear e exigem um leitor mais ativo do que passivo.

Chega a ser sintomático que, quando usamos o termo literatura contemporânea no Brasil, em geral pensamos numa geração surgida a partir dos anos 90, quando a web ainda engatinhava, ignorando tudo o que de mais inovador vem sendo produzido desde então, inclusive por autores nacionais. Uma literatura sem papel vem se desenvolvendo como um universo à parte, com seus próprios canais de distribuição, utilizando-se de novos suportes, desenvolvendo suas próprias categorias críticas. Mesmo críticos mais renomados se surpreendem ao ver o vigor desta produção que cresce à margem das instituições e saberes tradicionais. Fatalmente se questionam sobre seu papel neste universo estruturalmente participativo, em que produtores e consumidores se misturam. E se ressentem da perda de seu prestígio como gatekeepers, perdendo o poder de dizer o que é bom ou ruim. Poder que passou a ser pulverizado por comunidades de fãs (com seus fancritics, fanartists, fanfictions etc), que se comunicam e compartilham interesses fora das redes tradicionais dos suplementos literários e círculos universitários.


CRISTIANE HENRIQUES COSTA é doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professora da ECO e pesquisadora do pós-doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde desenvolve estudo sobre as novas estratégias narrativas em mídia digital. É curadora, junto com Heloisa Buarque de Hollanda, do ciclo Oi Cabeça, que acontece até dezembro no Oi Flamengo. Dia 22, às 19h30m, Scott Lindenbaum, Paulo Werneck, Sergio Rodrigues e Carlos Carrenho falam sobre “Novos espaços para a literatura”

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