LABIRINTO DE ESPELHOS


Tive este pensamento quando assisti Avatar. Apesar dos efeitos especiais do filme, não pude deixar de perceber ecos de histórias que aconteceram na realidade. Quantos exploradores, cientistas e entre outros abandonaram seus lugares de origem e mergulharam em um novo mundo e fazendo parte dele em seguida e se tornado outro. Acho isto fantástico e possível de acontecer.

No conto “ história do guerreiro e da cativa”, Borges narra duas histórias paralelas de diferentes épocas, mas que na essência, idênticas. A primeira parte do conto é de um guerreiro que traiu os seus para defender o que eram antes, seus inimigos e a segunda  relata, a história de uma inglesa que foi raptada pelos índios do “pampa” e ao longo do tempo se tornou uma “ aborígine”:

”... Droctulft foi um guerreiro lombardo, que no cerco de Ravena, abandonou os seus e morreu defendendo a cidade que antes atacara. Os ravenenses sepultaram-no num templo e compuseram um epitáfio em manifestavam sua gratidão: “ desprezou os seus entes queridos, para nos amar”.
... Em 1872, meu avô Borges era chefe das fronteiras Norte e Oeste de Buenos Aires e Sul de Santa Fé. O comando estava em Junín; mais além, a quatro ou cinco léguas um do outro, a cadeia dos fortins; mais além, o que então se denominava La Pampa e também Tierra Adentro. Uma vez, entre maravilhada e brincalhona, minha avó comentou seu destino de inglesa desterrada nesse fim de mundo; disseram-lhe que não era a única e lhe mostraram, meses depois, uma rapariga índia que atravessava lentamente a praça. Vestia duas mantas vermelhas e ia descalça; suas tranças eram loiras. Um soldado disse-lhe que outra inglesa queria falar com ela...
Talvez as duas mulheres, por um instante, se sentissem irmãs; estavam longe de sua ilha querida e num inacreditável país. Minha avó enunciou qualquer pergunta; a outra respondeu com dificuldade, procurando as palavras e repetindo-as, como que assombrada por algum antigo sabor. Faria quinze anos que não falava o idioma natal e não era fácil recuperá-lo. Disse que era de Yorkshire, que seus pais emigraram para Buenos Aires, que os perdera num ataque, que os índios a levaram e que agora era mulher de um capitãozinho a quem já tinha dado dois filhos e que era muito valente. Foi dizendo isso num inglês rústico, intercalado de araucano ou pampa, e por trás do relato se vislumbrava uma vida cruel: os toldos de couro de cavalo, as fogueiras de esterco, os festins de carne chamuscada ou de vísceras cruas, as sigilosas marchas ao amanhecer; o assalto aos currais, o alarido e o saque, a guerra, a caudalosa boiada tangida por cavaleiros desnudos, a poligamia, a hediondez e a magia. A tal barbárie se rebaixara uma inglesa. Movida pela lástima e pelo escândalo, minha avó exortou-a a não voltar. Jurou ampará-la, jurou resgatar seus filhos. A outra lhe respondeu que era feliz e voltou, nessa noite, para o deserto. Francisco Borges morreria pouco depois, na revolução de 74; minha avó, então, pôde talvez perceber na outra mulher, também arrebatada e transformada por este continente implacável, um espelho monstruoso de seu destino…
Mil e trezentos anos e o mar punham-se entre o destino da cativa e o destino de Droctulft. Os dois, agora, são igualmente irrecuperáveis. A figura do bárbaro que abraça a causa de Ravena, a figura da mulher européia que opta pelo deserto podem parecer antagônicas. No entanto, um ímpeto secreto arrebatou os dois, um ímpeto mais fundo que a razão, e os dois acataram esse ímpeto que não souberam justificar. Talvez as histórias que contei sejam uma única história. Para Deus, o anverso e o reverso desta moeda são iguais. ”

Ao fazer relações com o filme, o conto e algumas histórias reais, começo a concordar com a teoria de Borges que a História da humanidade é um labirinto de espelhos e que o eu e o outro, na realidade, são um só. E que a existência não deixa de de ser diversa e una. 

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